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O ciclo do assédio nas empresas

Conheça a estrutura por trás dessa violência  no trabalho – e entenda porque os incentivos da Lei Emprega Mais Mulheres à prevenção e ao combate ao assédio a deixaram com os dias contados.

Um ambiente seguro e saudável é a primeira condição para equidade de gênero no mercado de trabalho. Contudo, com o dobro de denúncias de assédio sexual registradas em 2023 no Brasil em comparação ao o ano anterior, esse mercado revela ainda ter espaço para abrigar culturas hostis e nocivas. Na pesquisa “O ciclo do assédio sexual no ambiente de trabalho”, que desenvolvemos em 2020 com o LinkedIn em parceria com o Instituto Netquest, investigamos mais de perto a estrutura da violência de gênero nas organizações e percebemos que ela acontece de uma forma típicia, constituindo o que chamamos de ciclo do assediador.

O ciclo do assediador consiste na manutenção da cultura do assédio através de um processo contínuo de violências. Nessa cultura, atitudes e comportamentos misóginos são socialmente normalizados em função das desigualdades de gênero, prejudicando diretamente as mulheres em diversos aspectos da vida. No mundo do trabalho, é o ciclo do assediador que sustenta a cultura do assédio nas organizações, utilizando mecanismos como o silenciamento e a omissão para sua própria permanência. Entenda como ele acontece:

(Muitas) Mulheres sofrem assédio sexual…

Segundo a pesquisa, 47% das brasileiras já foram vítimas de assédio sexual no trabalho, sejam elas assistentes, gerentes, estagiárias e até diretoras. Embora atinja a todas as mulheres, essa é uma violência também guiada pela desigualdade, já que 52% das vítimas são negras, 63% residem na região Norte e 49% têm renda entre dois e seis salários mínimos. As denúncias de assédio sexual relatadas por funcionárias da Petrobras para o Jornal Globo ilustram esse fato: segundo os relatos dos casos que acontecem há mais de uma década, as funcionárias terceirizadas e faxineiras são as principais vítimas.

… Mas poucas vítimas denunciam seus agressores.

Apenas 8% das mulheres que sofreram assédio sexual formalizaram uma denúncia contra o assediador. Em contrapartida, 33% não fizeram nada a respeito e uma em cada seis vítimas pediu demissão. A maior parte das entrevistadas (50%) contou apenas para pessoas muito próximas sobre o ocorrido. Ao mesmo tempo, as vítimas ainda precisam lidar com os efeitos nefastos da violação, que atingem perigosamente aquelas em vulnerabilidade social: cerca de 30% das mulheres apresentam sintomas de ansiedade e depressão e metade das mulheres que recebem até dois salários mínimos relatam se sentir inseguras no local de trabalho. No relato feito à Agência Pública sobre o assédio cometido pelo professor e pesquisador Boaventura Sousa Santos durante seu doutorado, a deputada Bella Gonçalves contou que após a agressão, não recebeu apoio ou ajuda e, desamparada, desistiu da pós-graduação sem denunciar seu agressor: “(…) Meu cabelo começou a cair. Minha mãe dizia que eu estava louca de abrir mão de uma bolsa no exterior”.

Insegurança e medo são apenas consequências – a raiz do problema é a impunidade.

78% das mulheres afirmam que a maior barreira para denúncias é a falta de punição. Para 64% delas, são as políticas ineficientes e 60% afirmam ser a descrença das pessoas nos seus relatos. Na prática, as mulheres não sentem que estão de fato protegidas: apenas 15% das que presenciaram uma situação de assédio a uma colega conseguiram denunciar a agressão. Todos esses receios e inseguranças possuem fundamento, já que na administração pública, por exemplo, duas em cada três investigações por assédio sexual terminam sem punição aos agressores. Além disso, dados do Tribunal Superior do Trabalho mostram que em apenas 1% dos processos de assédio sexual no trabalho a vítima tem ganho total de causa. A impunidade é aliada do agressor, e para a vítima, sobra o desamparo.

Nessa relação de poder, quem pratica o assédio está blindado

Quando não são denunciados, os agressores seguem impunes. Quando impunes, eles mantêm a mesma conduta. Se seus comportamentos não são coibidos e suas ações penalizadas, os assediadores tendem a repeti-las com outras mulheres, e o resultado final é a manutenção do ciclo – foi o que aconteceu, por exemplo, na Caixa Econômica Federal. Segundo o relatório da corregedoria do banco, os assédios cometidos pelo ex-presidente Pedro Guimarães aconteceram “de forma reiterada”  e produziram na organização uma “cultura do medo”. Em abril, o Ministério Público do Trabalho determinou que o banco terá que pagar uma indenização por tolerar os atos de assédio no seu ambiente de trabalho. Esse entendimento da justiça mostra bem como o assédio sexual não se restringe apenas ao que acontece entre a vítima e o agressor, envolvendo também a estrutura organizacional onde ambos estão inseridos. No entanto, apesar de ter sido demitido, em maio a CVM autorizou seu retorno ao mercado financeiro, atuando como consultor, mesmo sendo réu no caso.

A sanção da lei Emprega Mais Mulheres indica o momento de virar o jogo, permitindo que as empresas fortaleçam o combate e a prevenção ao assédio e rompam de vez com o ciclo do assediador. Em 2019, de acordo com a HR Acuity,  53% das empresas perceberam um aumento nos casos de assédio em seus canais de denúncia e 43% esperavam receber ainda mais casos em 2020 – e esse número de fato aumentou após um longo período de queda, mesmo durante a pandemia.  

Ao incluir a criação de mecanismos como códigos de conduta e canais de denúncia nas empresas entre os incentivos o enfrentamento ao assédio, a lei sancionada em 2022 com o objetivo de inserir mais mulheres no mercado de trabalho cria espaços para transformações culturais com parâmetros equânimes e seguros. O código de conduta permite que a empresa eleja as boas práticas e as expectativas das empresas em relação ao clima e a cultura organizacional, orientando-se pelos seus valores e estimulando o diálogo e a reflexão. A ideia é ter um guia para a resolução de conflitos, protegendo a organização e as pessoas e garantindo que todos estejam cientes dos comportamentos que são aceitáveis ou não naquele espaço.  

O código também permite clareza em relação às etapas e procedimentos dos canais de denúncias, desde o recebimento dos relatos aos processos de apuração dos casos, passando confiabilidade e segurança a todas as pessoas envolvidas. Como um importante aliado na construção da ética das organizações, o canal de denúncias precisa ser um espaço seguro onde as vítimas serão acolhidas e as organizações terão a oportunidade de combater os problemas que assolam sua cultura organizacional de forma eficiente e ágil. Empresas que não o possuem têm custos associados a problemas com má conduta duas vezes maiores do que as outras

Ambas os mecanismos, em conjunto, precisam ser fortalecidos para a proteção das mulheres nas empresas. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, somente em 2022, quase 12 milhões de mulheres foram vítimas de assédio sexual no trabalho em todo o Brasil, e após o impacto da pandemia, elas ainda têm enfrentado grandes barreiras para retornar permancer no mercado de trabalho. Ao buscar impulsionar a empregabilidade feminina, os incentivos da lei 14.457 se mostram fundamentais para quebrar o ciclo do assediador atuando através de ações preventivas, na responsabilização de agressores e no acolhimento das vítimas dentro das organizações. O resultado? Ambientes seguros e inclusivos, a verdadeira chave para o crescimento econômico com impacto social que transformará de vez empresas e a sociedade. 

 

Este conteúdo foi escrito em colaboração com Rubiana Viana.

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