500 anos depois da invasão europeia, indígenas ainda sentem os efeitos do violento processo de colonização – e as mulheres são as mais atingidas.
Mais de cinco séculos após a chegada dos europeus, os povos indígenas ainda vivenciam os impactos causados pela exploração colonial. A escravidão, o estupro, o aculturamento e o genocídio operados contra essa população deixaram marcas profundas no tecido social que impulsionam violação de diversos direitos na atualidade. As pessoas indígenas apresentam taxas de morbidade e mortalidade que chegam a ser até quatro vezes maiores do que o restante da população geral. Intoxicação por agrotóxicos, utilizados por vezes como armas químicas contra aldeias inteiras, mortes na disputa pela terra e decorrentes da desassistência do poder público contribuem para esse alto número. O avanço do garimpo ilegal nas terras indígenas também deixou seu rastro de violência e destruição: só nos últimos quatro anos, por exemplo, ao menos 570 crianças yanomamis morreram por causa da contaminação por mercúrio, desnutrição e fome decorrentes do impacto destas atividades. Segundo o Inpe, o garimpo ilegal cresceu 787% entre 2016 e 2022.
As mulheres indígenas foram e são, até hoje, extremamente afetadas pela violência colonial, tendo suas terras, seu corpo e sua identidade invadidos. Elas representam um dos grupos sociais mais vulneráveis do país, uma realidade facilmente desvelada quando traçamos alguns dados.
- As mulheres indígenas representam apenas 0,5% das estudantes universitárias do Brasil, segundo o INEP. Apesar da presença indígena no ensino superior ter aumentado após a implantação das políticas de cotas, esse grupo ainda enfrenta muitas dificuldades no acesso e permanência nas graduações: como mobilidade e barreiras linguísticas e culturais impostas pelo mundo ocidental.
- As mulheres indígenas da América Latina têm taxas de informalidade 25% mais altas que mulheres não indígenas, de acordo com a OIT. Mesmo sendo extremamente diversos, os povos originários enfrentam um problema comum: 85% das pessoas indígenas da América Latina trabalham na informalidade – inclusive mulheres. No Brasil, a taxa de informalidade entre as pessoas indígenas é a maior dentre todos os grupos raciais, e a média salarial quando nessa condição é a menor em comparação a não indígenas.
- Apenas 16% das gestantes indígenas realizaram o número adequado de consultas pré-natais – sete ou mais. Segundo a Fiocruz, a média brasileira é de 89,1%. Além disso, 2 em cada 3 gestantes indígenas não iniciam o acompanhamento pré-natal no tempo correto e entre de 40-50% não realiza exames cruciais. De 2018 a 2021, mais de 3 mil crianças indígenas de até cinco anos faleceram de mortes evitáveis, 72% delas com até um ano de idade. Ao lado das mulheres negras, mulheres indígenas também são as que mais morrem em decorrência de abortos, e também possuem um alto índice de mortalidade materna, superando mulheres brancas e pardas.
- 6 em cada 10 mulheres indígenas moradoras de regiões com garimpo estão severamente contaminadas pelo mercúrio, e 90% dos indígenas que habitam regiões próximas ao garimpo ilegal apresentam taxas de mercúrio acima da considerada segura no organismo. A substância, que contaminou a água e os alimentos, atravessa a placenta e o leite materno, causando abortos e danos neurológicos, cognitivos, motores e cardiovasculares. Entre o povo Munduruku, onde 62% das mulheres em idade reprodutiva foram contaminadas, já existe o temor em ter filhos: 7 em cada 10 adolescentes da comunidade tinham índices de mercúrio acima da média e 15,8% das crianças já apresentavam os sintomas mais graves da contaminação.
- Entre 2000 e 2020, houve um aumento de 167% nos números de feminicídio de mulheres indígenas, segundo o Instituto Igarapé. Só no Mato Grosso do Sul, estado com a maior população indígena do país, os casos de violência contra mulher indígena cresceram 495% em um período de seis anos. Contudo, ainda há indícios de subnotificação nos casos: entraves como a distância entre as comunidades e delegacias, a língua – 17,5% dos indígenas do Brasil não falam português – e a discriminação frequentemente impedem mulheres de registraram denúncias. Segundo o Sistema de Informação de Agravos de Notificação do Ministério da Saúde, entre 2007 e 2017 foram registrados 8.221 casos de violência contra mulheres indígenas.
- 1 em cada 3 mulheres indígenas já sofreu violência sexual ao longo da vida, segundo relatora da ONU. Nas terras indígenas Yanomami, onde uma crise humanitária foi causada pelo garimpo ilegal, ao menos trinta jovens estão grávidas de garimpeiros que abusavam sexualmente delas em troca de comida e alimentos. Além disso, mulheres e meninas indígenas são um dos grupos mais vulneráveis ao tráfico humano, fisgadas principalmente para a prostituição: na região da tríplice fronteira, entre Colômbia, Peru e Brasil no Amazonas, 80% das mulheres traficadas são exploradas sexualmente.
A ausência do Estado, as invasões de território, os desastres ambientais impunes e os projetos de aculturação são formas de genocídio em curso no Brasil de hoje. A disputa pela terra – e pelo futuro dos povos indígenas – recai sobre as mulheres de forma impiedosa e desproporcionalmente violenta. Precisamos destas mulheres, que estão na linha de frente desta luta, em espaços de emancipação e poder, como as universidades, a política e a saúde. Para os povos indígenas, corpo, território e ancestralidade não se separam. portanto, cuidar das mulheres indígenas é garantir o futuro de suas famílias, suas culturas e das florestas. É garantir o futuro de toda a humanidade.
Este conteúdo foi escrito em colaboração com Rubiana Viana.
Referências:
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- TAB UOL. Agrotóxico é usado como ‘arma química’ contra aldeias indígenas em MS. 2022.
- G1. Quase 100 crianças morreram na Terra Indígena Yanomami em 2022, diz Ministério dos Povos Indígenas. 2023.
- G1. Garimpo aumentou 787% em terras indígenas entre 2016 e 2022, aponta Inpe. 2023.
- Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Relatório “As Mulheres Indígenas e seus Direitos Humanos nas Américas”. 2017.
- GÊNERO E NÚMERO. Ingresso de mulheres indígenas nas universidades cresce 620% desde 2009. 2019.
- ONU. OIT quer ações urgentes contra pobreza e desigualdades entre povos indígenas. 2020.
- ONU. OIT: 85% das pessoas indígenas na América Latina trabalham informalmente. 2022.
- ESTADÃO. As dificuldades das mulheres indígenas para entrarem no mercado de trabalho. 2023.
- FIOCRUZ. Apenas 16% das gestantes indígenas realizaram o número adequado de consultas pré-natais.
- ABRAJI. Mais de 3 mil crianças indígenas morreram nos últimos 4 anos. 2024.
- CARTACAPITAL. Mulheres negras e indígenas são as que mais morrem ao abortar. 2020.
- AGÊNCIA PATRÍCIA GALVÃO. Alta de mortes maternas é marcada por iniquidades raciais e regionais.
- AMAZÔNIA REAL. Estudo revela contaminação por mercúrio de 100% dos Munduruku do Rio Tapajós. 2020.
- O GLOBO. Sete em cada 10 feminicídios no Brasil são de mulheres negras. 2022.
- FUNDAÇÃO VERDE. As mulheres são as principais vítimas da violência praticada contra as comunidades indígenas no mundo. 2018.
- FUNAI. Brasil registra 274 línguas indígenas diferentes faladas por 305 etnias. 2022.
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- ONU. Relatora Especial da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas recomenda maior documentação dos problemas enfrentados pelas mulheres indígenas do Brasil. 2016.
- G1. MPF vai investigar denúncia de 30 adolescentes grávidas de garimpeiros na Terra Yanomami.
- INSTITUTO IGARAPÉ. Tráfico de Mulheres e Meninas – Brasil, Colômbia e México.
- EL PAÍS. Pelos ‘prostibares’ da Amazônia, como funcionam as redes de prostituição na selva. 2020.