Combater a desigualdade de gênero é dever das instituições públicas – mas será que elas representam as 108,7 milhões de mulheres do país?
Uma administração pública eficiente cria e implementa soluções inovadoras para problemas sociais, políticos e econômicos de um país. Como a inovação é sempre maior entre grupos diversos, quanto mais representativo o setor público for, melhor ele irá responder às demandas da população.
Isso não muda quando o assunto é gênero: estudos da McKinsey e da Yañez-Pagans de 2015, e da Pnud de 2020 apontam que a presença de mulheres em cargos públicos de tomada de decisão tem uma correlação positiva com crescimento econômico, redução de desigualdades e investimento em educação, saúde e proteção ambiental. Ao assumirem a liderança na gestão pública, elas direcionam esforços para cobrir lacunas existentes nos planos de ação ao considerarem vivências, interesses e prioridades até então invisíveis. A diversidade de gênero aumenta a eficácia do setor público, mas apesar disso, a presença feminina nesses espaços está longe da ideal.
Mesmo representando 60% dos trabalhadores do serviço público brasileiro, mulheres são apenas 18% das liderança nesse setor, o número mais baixo entre os países da América Latina e Caribe. Apesar das contratações via concurso terem anulado algumas barreiras à inserção delas nas repartições públicas, nesse segmento a escolha dos gestores ainda acontece por indicação ou através de procedimentos subjetivos e pouco estruturados, sujeitos a vieses que penalizam mulheres. A ausência delas em cargos de liderança aprofunda a disparidade salarial, principalmente na interseção entre gênero e raça: no serviço público, uma mulher negra recebe 66% do salário de um homem branco.
Além disso, em entrevista para a Folha a cientista política Mariana Chudnovsky pontuou que, mesmo com mais mulheres no setor público, “(…) essa representação formal segue em postos feminizados e nas áreas consideradas como ligadas ao papel da mulher na sociedade”. Não por acaso, um levantamento feito pelo Banco Internacional do Desenvolvimento em 2022 mostrou que na América Latina e no Caribe mulheres estão à frente de 56% das pastas de Desenvolvimento Social, 46% das pasta de Saúde e 44% das de Educação – segmentos vinculados ao cuidado e ao feminino – enquanto lideram apenas 26% das pastas de Defesa Nacional e 31% das de Fazenda ou Economia.
Ao mesmo tempo, apesar do aumento na participação de mulheres em processos eleitorais, o Brasil continua abaixo da média mundial de representação parlamentar feminina. A participação das mulheres nas câmaras municipal, estadual ou federal não ultrapassa os 20%. No Executivo, elas ocupam apenas 12% das prefeituras e desse total, somente 1,2% são negras. Nas últimas eleições, só duas governadoras se elegeram – o mesmo número de mulheres negras que já ocuparam esse posto na história do Brasil. Presidenta? Apenas uma.
No mundo todo, apenas 10% dos países são liderados por mulheres. E mesmo assim, aqueles que possuíam uma liderança feminina tiveram melhor desempenho no enfrentamento à COVID-19. Aqui no Brasil, mesmo em menor número nas casas legislativas, as mulheres produzem e aprovam mais projetos de lei que seus colegas homens. Esse é o impacto da presença feminina na gestão pública, ainda em posição de desvantagem.
Países como Bolívia e México, por exemplo, definiram por lei 50% das vagas do parlamento para mulheres, e no México, isso também se aplica ao Judiciário. No Brasil, esse poder repete as desigualdades do setor público: apesar de as mulheres serem 56% das servidoras e 36% dos magistrados, a participação delas cai conforme o nível hierárquico avança – elas são 39% dos juízes titulares, 23% dos desembargadores e apenas 16% dos ministros de todos os tribunais superiores. Nesse contexto, mulheres negras representam só 7% dos juízes do país. Para reduzir a desigualdade no Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça aprovou este ano uma regra que impulsiona a promoção de mulheres para a segunda instância.
Não dá para esperar que a igualdade aconteça de forma orgânica: esse é um trabalho que demanda ações intencionais. Quando mulheres não são estimuladas, desde pequenas, a serem líderes ou ingressar na vida pública, quando a divisão sexual do trabalho responsabiliza apenas elas pelo trabalho doméstico e de cuidado e quando estereótipos de gênero e preconceitos raciais impõe barreiras em suas trajetórias, a paridade se torna uma meta inacessível. No final, acabar com a desvantagem das mulheres no setor público é transformar estatísticas e impulsionar a presença feminina onde ainda são minoria ou sequer chegaram. E é por isso que decidimos apostar na escolha mais lógica: mudar as estatísticas com uma mulher negra, pela primeira vez, no Supremo Tribunal Federal.
Este conteúdo foi escrito em colaboração com Rubiana Viana.