Você já deve ter se deparado com o conceito “white savior” em discussões sobre racismo. Se não, aqui vai uma breve explicação: é quando uma pessoa branca se aproxima de uma pessoa ou cultura negra para retratá-la como coitadinha, sofredora e digna de dó. Para logo em seguida, colocar-se como o “salvador branco”, um super herói que a resgata da miséria.
E o que isso tem a ver com marcas e pandemia? Apesar da comoção do empresariado brasileiro em torno do momento atual, o complexo do branco salvador – neste caso o empresário salvador – se desenha de forma similar. Chamamos aqui então de “brand savior’, uma abordagem baseada em condescendência, em autopromoção e completamente desconectada da realidade das pessoas que ajuda. Estamos falando de todas as empresas e marcas? Obviamente não. E é a isso que este artigo se dedica. A orientar pessoas e empresas a agirem de forma coerente com o contexto e convidá-las a abandonarem sua postura benevolente, de salvadora dos fracos e oprimidos, por que isso faz mais mal que bem.
Desde o nascimento da Think Eva, em 2015, nosso trabalho é chamar marcas e empresas à responsabilidade, abrindo seus olhos para a importância de compreender o contexto em que vivem as mulheres. E mais do que entender, nosso convite é para atuarem sobre ele e assim se conectarem com esta parcela tão importante da população. O cenário criado pela pandemia do novo coronavírus trouxe um contexto complexo, sem precedentes na nossa geração, e a maioria das marcas se encontram sem respostas sobre o que fazer. Muitas paralisaram seus investimentos, algumas seguem com o mesmo discurso de sempre e tantas outras buscaram se envolver de alguma forma na luta contra os avanços da pandemia.
Basta iniciarmos o debate e logo surge o argumento padrão: “mas pelos menos eles estão fazendo alguma coisa”. Esta visão é condescendente e, mais ainda, nociva às mulheres em qualquer iniciativa de marca, por mais ingênua, oportunista ou insignificante que ela seja. Não podemos ter um olhar conformista e aceitar que marcas permaneçam em seus lugares de conforto no meio de uma das maiores crises de nossa história recente. Como parte da sociedade e como quem se beneficia dela, é urgente que assumam seu lugar.
A pandemia não atinge a todas as pessoas da mesma forma e as empresas precisam entender isso.
Na manhã de 22 de abril, em uma coletiva de imprensa do Governo do Estado de São Paulo, o governador João Dória anunciou uma doação de R$1 Milhão em chocolates feita pela empresa Hershey’s do Brasil aos profissionais de saúde do interior do estado. Com orgulho, o CEO da empresa que lucrou US$ 325,3 milhões somente no terceiro trimestre de 2019 anuncia a ação para imediatamente ser aplaudido pelo poder público. Os chocolates estão sendo distribuídos, em sua maioria, em hospitais e centros médicos, para profissionais da saúde que se dedicam ao combate da COVID-19 e, segundo o empresário, “têm efeito nutricional e também anti-stress, importante em tempos de crise. Mas uma empresa deste tamanho tem apenas isso a oferecer? As mesmas mulheres (sim, 84,7% dos técnicos e auxiliares de enfermagem são mulheres), estão exaustas, afastadas de suas famílias e trabalhando sem condições mínimas de segurança pela falta generalizada de EPIs. Mas, obrigada pelos seus chocolates, brand savior. “Pelo menos é alguma coisa”.
Para entendermos atuação das marcas durante a pandemia e separar o joio do trigo, observamos suas atitudes por dois eixos principais: o eixo da necessidade coletiva e o eixo da entrega de marca ou empresa. E existe uma ordem prioritária para olhar para cada um deles.
Quando pensamos na necessidade coletiva, estamos nos propondo a estudar o contexto social em que uma empresa se insere. No caso desta pandemia, o contexto social nos mostra, entre outras coisas, que além de uma crise de saúde, famílias passam fome pois suas crianças estão fora das escola, mães estão impossibilitadas de sair de casa em busca de renda, que mulheres estão isoladas com seus agressores, que micro e pequenas empresas não tem caixa para sobreviver, entre tantos outros fatores. Este contexto social nos ajuda a compreender quais são as necessidades mais relevantes para a população que enfrenta a crise causada pelo coronavírus.
Ao conhecer o espectro de necessidades coletiva, fica mais fácil compreender sua entrega de marca. A ação sua empresa tem a oferecer. E aí mora outro desafio: sua marca está disposta a sustentar uma atitude concreta, que vai de fato mexer nas estruturas sociais e certamente exigirá empenho da empresa? Ou está mais interessada na possibilidade de discurso que se apresenta à frente? A discussão sobre atitude e discurso é fundamental para qualquer player que queira sair do outro lado desta pandemia com o mínimo de dignidade. Atentas, as mulheres já não querem só ouvir. Elas precisam ter chão, ter onde se agarrar. E elas não podem esperar.
Este artigo é parte de uma série de três textos, que abordam mais profundamente não apenas o conceito de relevância das ações de marca, mas a aplicação de casos neste gráfico orientador, uma ferramenta desenvolvida pela Think Eva.