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3 Reflexões sobre o SxSW 2023 a partir da Inteligência Think Eva

Acabamos de voltar do SXSW 2023 (essa foi nossa terceira vez no festival!) e estamos cheias de reflexões. Em 2016, nosso painel debatia sobre como o Ciberfeminismo moldava o futuro das marcas com reflexões importantes sobre comunicação e gênero no espaço da APEX. Em 2017, reforçamos a importância da diversidade na indústria de comunicação ao apresentarmos nosso case de reposicionamento de marca da Avon, em parceria com a Mutato, no painel  “Diversity Now: pushing boundaries forward”.

Neste ano, com os olhos atentos de quem esteve lá apenas para aprender, decidimos dividir com vocês algumas coisas que chamaram nossa atenção nos debates em Austin. Não espere encontrar neste texto um relatório de tendências ou uma crítica à falta de diversidade do evento – existem muitas pessoas incríveis já cuidando disso. Decidimos focar nosso olhar em uma análise crítica sobre a vida das pessoas – sobretudo das mulheres – diante das profundas transformações que devemos enfrentar nos próximos anos. Como viveremos com nossas diferenças e semelhanças, superaremos as desigualdades e supriremos nossas necessidades humanas neste mundo novo que se desenha a partir da perspectiva de engenheiros do Vale do Silício? Organizamos nossos pensamentos em três reflexões que nos instigaram a partir do que aprendemos e que você só verá por aqui.

 

O medo da tecnologia é o medo da exclusão 

Ao contrário do que o senso comum aponta, quando uma startup se propõe a escalar um serviço ou produto, essa escala não quer dizer que mais pessoas terão acesso a ele. E pior, a escala pode aumentar ainda mais as desigualdades sociais. Pensar em uma inovação escalável ao infinito implica necessariamente em passar por cima de necessidades específicas e impactos locais. Inúmeros fatores podem promover a exclusão, além da questão econômica: a linguagem inacessível para determinados grupos da população, a escassez de tempo para consumir/aprender das mulheres implicadas na economia do cuidado, a falta de capilaridade de algumas redes ou acesso restrito a tecnologias… O avanço da tecnologia vai deixando os grupos marginalizados pelo caminho, ampliando ainda mais a desigualdade social em cada país.

Em uma nota mais concreta, nas indústrias que pautam o lucro e a sua existência na premissa da escalabilidade, o pensamento vigente é de que quanto menos pessoas forem implicadas no processo de produção, melhor. Trocar seres humanos por máquinas é mais rentável, traz menos gastos e garante previsibilidade. A receita perfeita dos negócios tecnológicos de sucesso de hoje. Mas para a coletividade, os efeitos são catastróficos.

Muitos painéis trataram dos perigos do individualismo acentuado a serviço da produtividade. No entanto, uma das falas mais destacadas neste tema foi a de Douglas Rushkoff, professor de Teoria da Mídia e Economia Digital na City University of New York, na palestra intitulada “O fim da  mentalidade do bilionário: uma celebração”. Baseado nos estudos para seu novo livro, ele comenta sobre como os criadores de novas tecnologias simplesmente aceitaram replicar as regras do capitalismo, o excesso de confiança no cientificismo e as antigas lógicas de dominação em suas inovações. Resumindo: tanta mudança e nenhum questionamento sobre o status quo. Ele também faz um chamado para que retomemos o caráter pró-humano, horizontal e distribuído do início da Internet para criar a próxima era da inovação.

“Não podemos continuar escolhendo a dopamina (hormônio que traz resposta individual a estímulos de prazer). É preciso apostar na ocitocina, que é o que nos mantém em redes de afeto e colaboração com os demais”. 

O receio que temos da tecnologia não é o medo do novo, como alguns gurus gostam de repercutir. O medo que temos é a certeza de que quem está liderando esses avanços tecnológicos não levam em conta como essas ferramentas podem escalar ainda mais a desigualdade e injustiças sociais. E que, por isso, a vida que já é difícil estará ainda mais em risco. 

Essa reflexão nos fez lembrar da fala do Ted Chiang, escritor estadunidense de ficção científica, no podcast do Ezra Klein, do New York Times:

“Costumo pensar que a maioria dos medos sobre I.A. são melhor entendidos como medos sobre o capitalismo. E acho que isso também é verdade para a maioria dos medos da tecnologia. E a tecnologia e o capitalismo estão tão intimamente ligados que é difícil distinguir os dois.”

Se mulheres, pessoas negras, pessoas com deficiência ou outros grupos minorizados sequer conquistaram o reconhecimento como sujeitos plenos de direito, imaginem como o futuro será para estas pessoas? Um novo ethos para a criação e o uso da tecnologia são imperativos. E não é porque temos medo dela, mas sim porque temos consciência.

 

Linguagem importa

No Brasil, a pauta sobre a linguagem neutra, levantada pelo movimento LGBTQIAP+  está muito presente no debate público e no dia a dia das marcas e empresas. Disputar a linguagem é uma estratégia eficiente para alcançar as transformações pelas quais lutam grupos minorizados. Atualizar os termos e chamar as coisas pelo que elas são, e não como a indústria, a cultura ou pensamentos superados pela história as nomeou, é reclamar para si uma forma ativa de participar da conversa. 

Nos painéis do SxSW 2023, observamos com atenção os nomes que são dados às coisas que são caras para as pessoas. Em um painel sobre dignidade menstrual, pudemos ver de forma concreta como isso acontece na língua inglesa. Um termo muito difundido nos Estados Unidos para falar sobre o acesso de mulheres e pessoas que menstruam aos absorventes é Feminine Hygiene (higiene feminina). Porém, não estamos falando apenas de higiene, correto? Não ter acesso aos produtos para menstruação como absorventes e copinhos menstruais e ter esses itens categorizados como produtos de higiene – como a famosa tampon tax – normaliza, pela linguagem, a exclusão de um direito básico que é o direito de quem menstrua ter acesso aos produtos que viabilizam uma vida normal, mesmo com a menstruação acontecendo. No painel, as debatedoras propõem: sai higiene feminina, entra saúde menstrual.  

Higiene feminina é uma categoria de produto inventada pela indústria. Saúde menstrual é um direito que deveria ser garantido para todas as pessoas que menstruam.

Quando escolhemos este termo, também ampliamos o direcionamento a todas as pessoas que menstruam e não apenas a mulheres cis. Deu pra entender a astúcia?

Outro exemplo interessante é nas falas sobre aborto. A proibição recente do aborto pela Suprema Corte (conhecida como a Roe vs Wade overturn) turbinou o debate sobre direitos reprodutivos no SxSW. No painel “Data privacy after Roe vs. Wade”, as debatedoras Cecile Richards, Alexandra Givens e Nabiha Syed falaram durante uma hora sobre as ameaças que o uso indevido de dados trazem às mulheres que precisam abortar. Nesta duas horas, elas devem ter usado a palavra aborto duas vezes. Para se referir ao assunto, elas usam termos como reproductive rights (direitos reprodutivos), reproductive care (cuidado reprodutivo), birth control (controle de natalidade), reproductive health (saúde reprodutiva). Sabemos a dificuldade de se falar sobre o assunto e a palavra “aborto” carrega uma série de conceitos e julgamentos morais. Ao posicionar, via léxico, o aborto como um direito e como uma questão de saúde, nos afastamos to campo moral que interdita a conversa. Então abrimos a escuta e consequentemente o entendimento sobre a questão. Não é brilhante?

Convidamos à reflexão sobre a ampliação do arcabouço de palavras, a expansão do léxico com os termos que nos levarão ao lugar que queremos ocupar. De que outras maneiras você pode falar sobre algo que é importante para você?

 

Coleta de dados também pode ser uma ameaça aos direitos humanos

Já assistimos nos documentários Coded Bias e no Social Dilemma o impacto das redes sociais e do fim da privacidade (se não viu, recomendamos que veja!). 

Sob o capitalismo de vigilância moderno, as big techs podem coletar e monetizar dados online em uma escala sem precedentes com pouco escrutínio ou limitação. E como isso pode ameaçar as pessoas de grupos não hegemônicos?

No mesmo painel citado acima, que discutia privacidade e aborto, uma informação nos impactou: mulheres que tinham a intenção de abortar tiveram suas conversas privadas via chats das redes sociais usadas em acusações e processos pelo Estado. O que isso quer dizer? Que uma mulher desesperada, que busca ajuda com suas amigas ou até com suas mães (lembremos que o aborto foi permitido entre 1973 até 2022, portanto bastante normalizado) estará produzindo provas contra si. Mulheres nesta situação não têm direito à privacidade de suas conversas e sequer sabem disso. Os dados pessoais coletados pelas big techs podem estar sendo vendidos e usados para fins escusos, sem seu consentimento. 

Outro exemplo citado pelas panelistas é o uso de dados pessoais por ex-maridos que denunciam suas ex-companheiras durante o processo de divorcio por terem realizado ou tentado realizar um aborto. Em 2019, o aplicativo de monitoramento de menstruação Flo teve que entrar em acordo com a Federal Trade Commission (FTC), depois de vender dados de usuários para empresas como Meta e Google. E o sistema judiciário (patriarcal) aceita violações de privacidade como provas, sem questioná-las. Mulheres que recorrem à justiça para conseguir um divórcio podem acabar acusadas de um crime.

A negação de um direito – à privacidade – pode colocar uma mulher…na cadeia. Nossa privacidade está em risco e pode ser manipulada e direcionada por qualquer um que puder pagar pelos seus dados. Você já leu os termos de uso de sua rede social ou do seu app  favorito hoje?

Além de delimitar o problema, no SxSW 2023 também foram discutidas algumas soluções. Um dos painéis mais propositivos foi o da Brittany Kaiser, ex-diretora de desenvolvimento de negócios da Cambridge Analytica e principal personagem do documentário da Netflix The Great Hack. Ela propõe 5 componentes para uma tecnologia e gestão de dados responsável: transparência, consentimento, responsabilidade, propriedade e, mais recentemente, sustentabilidade.

À esta altura, qualquer debate sobre novas tecnologias e escalabilidade precisam estar de mãos dadas com a consciência social e a responsabilidade (accountability foi um conceito muito mencionado no SXSW 2023). A caminhada é longa, mas as propostas já estão sendo discutidas e desenhadas por especialistas proeminentes. Enquanto governos, empresas e sociedade não olharem para o impacto social das tecnologias, o que estamos chamando de inovação será apenas manutenção de privilégios e do status quo.

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